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É Ventura a reencarnação de Cunhal?

Nos anos 70 e 80, o eleitorado do PCP era composto sobretudo por operários industriais, trabalhadores agrícolas, pequenas classes médias e funcionários públicos com baixos rendimentos e fracos níveis de escolaridade.


Como mostraram Manuel Loff e Boaventura de Sousa Santos, estas populações estavam enraizadas em zonas rurais ou industriais desvalorizadas e tinham forte ligação a sindicatos e coletividades. O PCP organizava o seu descontentamento em torno da luta de classes e da transformação da sociedade pelo Estado. A proposta era revolucionária, mas moral: justiça social para quem trabalhava. Contudo, Cunhal e a elite partidária não hesitaram em instrumentalizar essa revolta, simplificando a realidade e substituindo a democracia plural pela rigidez doutrinária.

 

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Nas décadas de 2020, o Chega cresce entre trabalhadores precários, desempregados, pequenos empresários revoltados com a carga fiscal, jovens adultos sem perspetivas e populações suburbanas ou do interior. Os níveis de escolaridade são baixos a médios, os rendimentos modestos. A revolta é canalizada não pela esquerda, mas pela direita radical. Ventura reconhece, como Cunhal, o potencial de uma massa desiludida — e apresenta-se como seu redentor. O que antes era promessa de justiça social é agora promessa de vingança cultural. Ambos mobilizam frustrações legítimas para projetos pessoais e políticos de poder.

 

Geograficamente, as semelhanças são também evidentes. O PCP consolidou-se no Alentejo, Barreiro ou Seixal, o Chega ganha força em Beja, Faro, Loures ou Vila Franca de Xira. Em ambos os casos, são zonas onde o Estado falhou na promessa de igualdade. O ressentimento social é o mesmo; muda apenas o discurso: antes falava-se de dignidade do trabalho, hoje fala-se de “portugueses esquecidos”.

 

Ambos os partidos constroem um inimigo interno para alimentar a sua retórica. O PCP apelava à luta contra “patrões” e “latifundiários”; o Chega combate os “políticos do sistema” e os “privilegiados do regime”. A lógica é idêntica: identificar um grupo dominante e responsabilizá-lo por todas as injustiças. Num caso, é luta de classes; no outro, populismo anti-sistema. Em ambos, há apelo à raiva de quem se sente traído — e ambos os líderes sabem usá-la como arma eleitoral.

 

Há ainda a referência a um modelo externo idealizado. Para o PCP, a União Soviética era a pátria dos trabalhadores. Moscovo legitimava o projeto comunista português e oferecia doutrina, estratégia e inspiração. Hoje, Ventura vê em Donald Trump o símbolo de um novo populismo global, assente na rejeição das elites e dos valores liberais. O Chega insere-se numa rede internacional de extrema-direita, tal como o PCP se inseria na rede comunista. A relação com Trump é menos ideológica do que a de Cunhal com Moscovo, mas igualmente simbólica: ambos constroem mitos externos para reforçar o seu projeto interno.

 

Este tipo de identificação com potências estrangeiras não é novo. Nos anos 20 e 30, o fascismo e o comunismo disputavam as mesmas bases sociais: massas operárias, ex-combatentes, pequenos comerciantes em crise. Em muitos casos, a escolha era menos ideológica do que emocional: quem prometia resposta imediata ao desespero, ganhava o voto. Mussolini, antes de fundar o fascismo, dirigia o jornal socialista Avanti — um símbolo da fluidez entre extremos quando o centro político falha.

 

Hoje, muitos votam Chega pelas mesmas razões com que outros votaram PCP: desconfiança nos partidos do regime, medo do futuro, invisibilidade social. A diferença está no caminho proposto: onde antes havia solidariedade, há agora exclusão; onde havia utopia, há ressentimento.

 

Ventura e Cunhal criaram partidos personalistas, disciplinados, com forte ancoragem num eleitorado marginalizado. Veneram modelos estrangeiros como forma de legitimação. Ambos são sintomas da falência da democracia liberal em representar todos — mas também são agentes ativos na transformação da revolta popular em projetos de poder absoluto, cultivando a ilusão da redenção através da força de um só homem.

 

Cabe aos partidos de centro — PS e PSD — a responsabilidade de escutar, representar e agir. Têm de estar à altura do que foram figuras como Cavaco Silva e Mário Soares, que, embora em campos opostos, souberam conter os excessos e equilibrar o sistema. Só assim se impedirá que novas figuras autoritárias manipulem o descontentamento e convertam frustração em culto pessoal.

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