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Donaldmania: Trump no Reino da Fezada (Parte II)


Basta recuarmos aos séculos XVI a XVIII para constatar que o protecionismo nunca foi sinónimo de desenvolvimento económico e social. Por essa altura vivíamos sob a égide das doutrinas mercantilistas, que exaltavam a indústria interna sob o jugo apertado do Estado; o superavit comercial através da exploração e criação de monopólios e da imposição de elevadas tarifas alfandegárias; e que tinham como objectivo central o enriquecimento das elites ligadas à monarquia absoluta e a consolidação dos alicerces do poder régio.


Foi uma era de guerra comercial permanente que muitas vezes se estendeu ao campo de batalha, em que cada país encarava o comércio como um jogo de soma zero. Ou seja, em que o ganho de um era necessariamente a perda do outro.


Apesar de alguns países terem acumulado somas incomensuráveis de riqueza, hoje compreendemos que esta visão da economia internacional, assim como da psicologia humana, agiu como um travão ao potencial de cooperação e de especialização entre nações e, em última análise, à estagnação económica, política e social, que acabariam por culminar no liberalismo, em Adam Smith e no século das revoluções.


Quanto ao capitalismo não sei se Marx um dia terá razão, mas o mercantilismo tinha de facto em si o gérmen da sua própria destruição.


E a razão é simples: a ausência de concorrência e de liberdade resultam numa economia anémica, ineficiente e sem especial apetência para o progresso e inovação.


Se considerarmos que isso foi há muito tempo e ainda nem existiam EUA, podemos mudar o foco para a Lei Smoot-Hawley que, com a aplicação de uma taxa de 20% sobre mais de 20 mil produtos importados, contribuiu na década de 30 do século XX, para o agravamento das consequências da grande depressão, que se fizeram sentir com especial severidade junto da classe operária americana.


É certo que as grandes corporações sentirão os efeitos. Mas não haja dúvidas: quem verdadeiramente pagará esta fatura serão os trabalhadores americanos, confrontados com a subida dos preços nos bens e serviços, e as pequenas e médias empresas, cuja atividade assenta precisamente na importação.


Não é porque acaso que algumas vozes de relevo na sociedade norte-americana começam a alertar para o risco de uma vaga de falências, provocada pela imposição de tarifas sobre matérias-primas e componentes essenciais à produção de bens nos quais os EUA não são líderes de mercado. Fazem-no porque compreendem os fundamentos da economia e as teorias que os sustentam.


Uma destas teorias é a da elasticidade-preço da procura que estabelece que o aumento do preço de um bem, leva inevitavelmente à quebra do consumo desse bem, seja pelo efeito da substituição (compra de bens sucedâneos), seja pela diminuição do rendimento disponível. Resultado: menor procura, menor volume de vendas e maior instabilidade económica.


Se a isto somarmos a diminuição da utilidade total (satisfação) dos consumidores americanos, temos a antítese perfeita do slogan de campanha de Bill Clinton: Its the economy stupid!


Não que para Donald Trump e os seus conselheiros económicos isso faça alguma diferença. Contra todas as evidências e todos os alertas, continuarão a navegar confiantes, não na realidade, mas no Reino da Fezada.

 

Não se pense, porém, que este ciclo de penalizações termina nas fronteiras americanas.


Os países atingidos por estas tarifas (o mundo inteiro, portanto) verão inevitavelmente as suas exportações para os Estados Unidos cair, o que terá impactos no emprego e na procura interna que variarão consoante o seu grau de dependência comercial face ao mercado norte americano.


Mas estas mesmas empresas e trabalhadores também consomem produtos americanos. Com menos rendimento disponível e o preço dos bens americanos a subir devido às tarifas retaliatórias, comprarão menos. E assim, os EUA exportarão menos, produzirão menos e empregarão menos.

O que Trump e os seus conselheiros parecem ignorar é que o comércio internacional é uma via de dois sentidos, e que num ciclo de retaliações, ninguém sai ileso. É este o efeito perverso de uma guerra comercial: não há vencedores e todos saem feridos.


Para além disso, importa salientar que, por mais pujante que seja , a economia americana representa “apenas” cerca de 17% do comércio internacional. Ou seja, do ponto de vista médio, as tarifas americanas vão ter um impacto circunscrito a 17% das exportações dos países afectados. Já se todos eles decidirem retaliar, isso far-se-á sentir em praticamente 100% das exportações dos EUA. A lógica deste confronto é tudo menos simétrica.


Por isso, o que foi proclamado como o dia da libertação poderá vir a tornar-se o catalisador perfeito para o início de uma recessão, e acentuar ainda mais as desigualdades internas de um país já fraturado por profundas clivagens políticas, económicas e sociais.


A não ser que o objectivo de Trump, mais do que proteger o emprego doméstico ou corrigir o déficit comercial, seja outro: através da disrupção do comércio mundial colocar um travão à reconfiguração de ordem internacional, com especial destaque para a ascensão da China como gigante económico-militar, e a sua crescente capacidade de projectar força em toda a região do Indo-Pacífico.


Isto significaria que não estaríamos apenas perante uma opção de política económica, mas no dealbar de uma guerra comercial estratégica com consequências difíceis de imaginar.


(continua na Parte II)

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